A IGREJA DA NIGÉRIA: o coração do anglicanismo ortodoxo


Por Rev. Dr. Rodson Ricardo

A Igreja da Nigéria é a segunda maior província da Comunhão Anglicana, após apenas da Igreja da Inglaterra. Possui atualmente mais de 18 milhões de membros de uma população nigeriana total de 140 milhões. Pelo menos 2 milhões de nigerianos vão a uma Igreja Anglicana no domingo.

O cristianismo chegou à Nigéria no século XV através de monges agostinianos e Capuchinhos de Portugal. A primeira missão da Igreja da Inglaterra, no entanto, só se estabeleceu em 1842. No entanto o anglicanismo foi mais bem sucedido em sua missão. Em 1864, Samuel Ajayi Crowther, um ex-escravo da etnia yorubá e filho de sacerdote, foi eleito “Bispo de Níger” e o primeiro bispo negro da Comunhão Anglicana. 

1. Samuel Ajayi Crowther (1809 – 1891).Nascido na região ocidental da Nigéria, no povoado de Oxogun, Ajayi conta em sua biografia que um adivinho previra que ele não se dedicaria aos orixás (divindades do panteão Iorubá), pois se devotaria ao “Deus do céu”, Olorum. Quando ele tinha perto de 13 anos de idade, sua cidade foi invadida por caçadores de escravos islamizados de aldeias rivais, numa cena que lhe marcou a memória pela brutalidade e crueldade praticadas: “as casas incendiadas; perseguição, captura e condução das pessoas por correntes presas ao pescoço; os incapazes de seguir viagem eram sumariamente abatidos, e o desespero aumentava com a separação das famílias”. 

Depois disto ele foi comercializado por seis vezes, até ser entregue a comerciantes portugueses que faziam o tráfico transatlântico. Ajayi poderia ter terminado numa senzala no Brasil, mas o navio negreiro foi interceptado em abril de 1822 pela marinha britânica. Dezenas de outros cativos, foram levados a Serra Leoa, para a cidade de Freetown. Os 187 escravos além de Ajayi foram libertos enquanto o capitão e marinheiros foram postos a ferros

Uma vez em Serra Leoa, tem início uma nova vida para Crowther, com sua conversão ao cristianismo. Após três anos em Freetown, finalmente rendeu-se ao cristianismo. Sobre essa experiência, escreveu mais tarde: “sobre o terceiro ano da minha libertação da escravidão do homem, eu estava convencido de outro estado pior de escravidão, ou seja, a do pecado e de Satanás. Aprouve ao Senhor abrir meu coração(...) Eu foi admitido na Igreja visível de Cristo aqui na terra como um soldado para lutar bravamente sob sua bandeira contra nossos inimigos espirituais.”

No dia 11 de dezembro de 1825, ele foi batizado pelo Reverendo John Rahan, missionário da Sociedade Missionária Anglicana; após isto ele adotou o nome inglês de Samuel Crowther, em lembrança a um eminente clérigo daquela igreja com este nome. Não demorou muito para ele provar sua inteligência. Primeiro aprendeu inglês depois carpintaria, tecelagem e técnicas agrícolas. Rapidamente passou a inspetor na escola paroquial, função que lhe dava um pequeno rendimento. Em 1826 foi enviado a Londres para continuar seus estudos na Igreja de Santa Maria. Porém em 1827 ele decidiu ser missionário. Foi então enviado para a “Fourah Bay College” (núcleo da futura Universidade de Serra Leoa) sendo um dos seus primeiros alunos. Dividia sua rotina entre os estudos e a missão de ajudar os escravos libertados dos navios negreiros.

Sua fama ia crescendo. Não demorou muito para chamar a atenção dos superiores da missão. Na Expedição do Níger, em 1841, Crowther mostrou sua competência como intérprete, e foi então levado à Inglaterra, a fim de concluir os estudos e se ordenar presbítero. Ordenou-se a 11 de junho de 1843, pelo bispo de Londres sendo o primeiro africano a receber esta ordem; ao fim deste mesmo ano retornou para a África e inaugurou uma missão em Aoeokuta junto ao missionário inglês, Henry Townshend. Ele tornou-se uma espécie de “garoto propaganda” das missões na África. A pedido dos superiores viajou novamente a Inglaterra em 1851. Desta vez visitou os principais políticos e foi recebido pela Rainha Vitória, e causando grande impressão por sua intelectualidade. 

2. O primeiro Bispo Africano da era moderna

Em 1864 ele concluiu seu doutorado pela Universidade de Oxford. Com isto conquistou a admiração dos bispos. Então, apesar da oposição de parte do clero britânico, Ajayi foi sagrado o primeiro bispo negro no mesmo ano. Foi, assim, o primeiro bispo negro, nomeado “bispo dos países da África Ocidental, além domínios da rainha”. Um marco pioneiro de seu episcopado foi a abertura de uma nova linha de diálogo cristão-muçulmano na África.

Sofreu um derrame em 1891, vindo a falecer no último dia daquele ano. Foi então substituído por um bispo branco. Dom Samuel foi um grande missionário e linguista. Ele fez a primeira tradução da bíblia para o idioma yorubá. Isto teve um enorme impacto no crescimento da Igreja. É o mais conhecido religioso cristão africano do século XIX. Sua biografia é ensinada as crianças da Nigéria. Seu neto, Herbert Macaulay, foi um dos nacionalistas nigerianos, que lutaram pela independência daquele país. A ele se credita o primeiro livro feito por um falante nativo africano sobre linguística, em 1843, o “vocabulário de Yorubá”, estudado até hoje. Ele também escreveu a primeira gramática do Yorubá. A ortografia yorùbá surgiu por volta de 1850. Na verdade foi ele quem “criou” a língua. Historicamente “Yoruba” era um termo usado para descrever certas pessoas a partir de um canto da África Ocidental. Foi Samuel Crowther, que, em resposta à turbulência causada pelo tráfico de escravos, reuniu vários dialetos regionais em uma linguagem chamada “Yoruba” e assim lançou as bases de uma nova identidade nacional. Crowther é o “Pai do Yoruba” assim como Cirilo é o “Pai do ciríaco”.

Quando Samuel Crowther chegou a Serra Leoa, ele encontrou muitos outros ex-escravos de sua região lá também. Eventualmente ele começou a traduzir a Bíblia e o Livro de Oração Comum em uma linguagem que eles entendessem. Então, ele foi pioneiro em reúne os dialetos separados em uma língua estruturada “Yoruba”, completa com dicionário e gramática. Com uma linguagem unificada, veio um povo unido. Foram os missionários cristãos que começaram a falar do “povo Yoruba”. Foi através desta influência sob a poderosa força unificadora da língua ioruba unificada Crowther que o povo veio a pensar em si como parte de uma cultura distinta. É interessante que embora tenha rompido com a “religião dos orixás” ele sempre tenha valorizado os aspectos positivos que ela tinha comparando-a a religião dos patriarcas como o respeito aos mais velhos, a família e a “ancestralidade”. Isto fica claro na sua tradução da Bíblia.

3. A primeira bíblia da África 

O significado da versão Yoruba da Bíblia era que Crowther, um Africano, foi a principal influência na sua produção. Foi a primeira tradução feita por um falante nativo. Um marco na missiologia e na lingüística. Sendo ele um missionário procurou fazer uma “tradução dinâmica” do texto bíblico. Crowther insistia que a tradução deve indicar “uma nova partida”. No vocabulário e estilo, ele procurou seguir a linguagem coloquial, ouvindo os mais velhos e anotando o significado das palavras que surgiram em suas discussões com especialistas na antiga da religião.Ao longo dos anos, onde quer que estivesse, ele observou palavras, provérbios, forma de discurso. Um de seus golpes mais difíceis foi a perda das notas de onze anos das tais “observações de campo”, e alguns manuscritos, quando sua casa foi incendiada em 1862. Após concluir a bíblia em yorubá ele continuou com sua contribuição para o estudo da língua e da tradução escrevendo o primeiro livro no dialeto Igbo. Em 2005 a Igreja da Nigéria criou a “Universidade Ajayi Crowther”, em sua homenagem. 

4. O primeiro teólogo da África moderna

É famosa o relato que afirmava que ao nascer Samuel proibido por um adivinho (bàbáláwo?) de entrar em qualquer dos cultos dos orixás, porque ele iria crescer para ser um servo de Olorum, o Deus do céu. Esta história ilustra como os cristãos poderiam facilmente desenvolver o sistema de crença tradicional já com base em torno deste “Ser Supremo”. O ponto de discórdia era (e ainda é) a adoração dos orixás - os ancestrais locais que também foram heróis e foram divinizados. A interação da pessoa com o orixá é a “espinha dorsal” da vida diária Yoruba, e este aspecto social da religião foi menos facilmente adaptado.

Samuel Crowther e os demais missionários anglicanos encorajaram a visão de que os orixás eram simplesmente grandes indivíduos que tinham feito obras tão notáveis que, com o tempo, tornaram-se espécies de “deuses”. Na verdade isto teria sido uma “deformação” da religião yorubá original, que seria monoteísta. A missão cristã não veria “destruir” a fé do povo mais “restaurara-la e purificá-la” da idolatria e da superstição. Na base estava a crença num ser superior uma espécie de “deus desconhecido” de São Paulo. Como se sabe Na Mitologia Yorubá, Olorum é o Deus supremo que criou as divindades chamadas Orixá para representar todos os seus domínios aqui na terra, mas não são considerados deuses. Assim os “Orixás/Inkices/Voduns” são arquétipos de uma atividade ou função e representam as forças que controlam a natureza e seus fenômenos, tais como as águas, o vento, as florestas, os raios. Seriam no máximo anjos (e demônios) e não a “verdadeira divindade”. 

A melhor forma para se aproximar da cultura yorubá seria através das narrativas bíblicas do Antigo Testamento, em especial os patriarcas. Depois, através do estudo da “teologia original” ir recuperando os elementos da mitologia yorubá que “prefigurariam” a vinda de Jesus Cristo. A adoção de fé em Cristo, portanto, não era uma rejeição, mas uma evolução da crença yorubá. Eis a “teologia da missão” de Samuel Ajayi Crowther. 

3. Crescimento e expansão da Igreja da Nigéria

A década de 1990 foi o momento de maior crescimento da Igreja da Nigéria. Em 2000, o arcebispo Peter Akinola foi sagrado primaz da Igreja da Nigéria. Dom Akinola ganhou destaque internacional por se papel na liderança da luta contra o “relativismo teológico e moral” da Igreja dos Estados Unidos, que havia iniciada uma campanha mundial pelo casamento e ordenação gay no anglicanismo. Atualmente a Igreja da Nigéria é uma das principais envolvidas no “realinhamento” do anglicanismo mundial.



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