A Afirmação de São Luís e o Anglicanismo Contínuo

Por Rev. Rodson Ricardo Souza do Nascimento

A introdução

      A Afirmação de São Luís (1977) é a nossa certidão de nascimento. O principal documento do anglicanismo contínuo. Após várias horas de deliberação, o projeto foi aprovado por unanimidade com algumas emendas. Foi lido para os 1.800 participantes do Congresso, ouvido com grande atenção e aplaudido de pé. Não houve debate ou discussão. A Afirmação foi simplesmente promulgada. Nada parecido, que eu saiba, já havia evoluído em 450 anos de história anglicana. Por isso conhecer e compreender esse documento é tão importante para nós. Para este texto me utilizei de um comentário do Arcebispo Mark Haverland ACC/EUA. A Afirmação consiste em uma Introdução e Cinco Seções. Os principais pontos da Introdução são:

1) Dissolução das estruturas da Igreja Anglicana: Que as igrejas às quais os delegados anteriormente pertenciam deixaram de ter um ministério válido através do ato de ordenar mulheres ao sacerdócio.

2) Continuação do Anglicanismo: Que o Anglicanismo só poderia continuar através de uma completa separação das estruturas da Igreja Episcopal nos EUA e da Igreja Anglicana do Canadá.

3) Invalidade da Autoridade Cismática: Que as igrejas às quais os delegados haviam pertencido anteriormente se tornaram cismáticas por sua ruptura com a ordem tradicional e, portanto, deixaram de ter qualquer autoridade sobre eles ou outros membros.

4) Comunhão Continuada com Cantuária: Essa comunhão com Cantuária e todas as partes fiéis da Comunhão Anglicana continuaria após a separação visto que neste momento a Igreja da Inglaterra e o Arcebispo de Cantuária ainda não tinham se pervertido pelo liberalismo teológico.

Os fundamentos

      O capítulo 1, Princípios da Doutrina, contém teologia dogmática e afirma as três confissões de fé do Credo Niceno, do Credo dos Apóstolos e do Credo de Santo Atanásio. Da mesma forma, são afirmados os Sete Concílios Ecumênicos e os Sete Sacramentos, destacando-se o Batismo e a Santa Eucaristia como a incorporação em Cristo e “o sacrifício que nos une ao todo suficiente Sacrifício de Cristo na Cruz e ao Sacramento em que Ele nos alimenta com Seu Corpo e Sangue”, respectivamente. É também reafirmado a busca pela unidade da cristandade. O objetivo ecumênico de buscar a plena comunhão sacramental e a unidade visível com outros cristãos que mantêm a fé católica e apostólica.

     O capítulo 2, Princípios de moralidade, cobre temas ligados à teologia moral com o pecado original, a sacralidade da vida humana e o casamento como sacramento entre um homem e uma mulher. A Igreja não descrimina e nem condena ninguém. No entanto, ela não pode simplesmente se adaptar ao espírito do tempo. Reconhecer que Jesus Cristo é Deus encarnado e Senhor da Igreja é reconhecer que ele estabelece padrões de comportamento que devem ser característicos de todos os cristãos.

   O Capítulo 3, Princípios Constitucionais, discute a teologia da Igreja e a sua conciliaridade, os princípios organizacionais para a eleição dos bispos, a estrutura dos sínodos e o estabelecimento de tribunais eclesiásticos. Também convocou uma Assembleia Constituinte para redigir uma Constituição e Cânones que se baseariam na Afirmação, no Antigo Costume e no Direito Canônico Geral, e na antiga lei das províncias americanas e canadenses. 

      O Capítulo 4, Princípios de Adoração, discute a teologia litúrgica e estabelece o padrão de adoração anglicano e permite o Livro de Oração apenas nas edições do Livro Canadense de 1962 e do Livro Americano de 1928. Livros de Serviço (como o Missal Anglicano) conforme e incorporando-os também são permitidos. 

     O Capítulo 5, Princípios de Ação, trata de assuntos temporais da Igreja como finanças, pensões e educação. Já a participação no Conselho Mundial de Igrejas é explicitamente rejeitada. A comunhão com a Sé de Cantuária e a Comunhão Anglicana é novamente repetida. Esta seção final foi revogada pelo Colégio dos Bispos da Igreja Católica Anglicana em 17 de outubro de 2014, interpretando-a como “plena communio in sacris deve ser buscada ativamente com as Igrejas Apostólicas e Católicas que subscrevem totalmente a Afirmação de São Luís e defender seus princípios na prática”.

A Igreja Católica

     Em primeiro lugar, a Afirmação afirma que não faz nada de novo. A “Afirmação” começa ressalto que “... continuamos a ser o que somos. Não fazemos nada de novo”. Este tema de continuidade e de repúdio à inovação está implícito na autocompreensão comum no próprio nome do movimento que brotou de São Luís e da “Afirmação” da catolicidade na Igreja. Nós acreditamos que somos verdadeiramente católicos mesmo que não estejamos em unidade plena com Roma ou a Ortodoxia. Cremos e confessamos que fazemos parte da videira verdadeira. E fazemos isso apegando-se ao Comonitório, a Regra de São Vicente de Lerins para reconhecer onde está a fé verdadeira - Quod ubique, quod semper, quod ab ominibus- “o que [foi admitido] por todos, em toda a parte e sempre”. Eis a frase completa: “Na Igreja Católica é preciso pôr o maior cuidado para manter o que se crê em todas as partes, sempre e por todos. Eis o que é verdadeiramente e propriamente católico ...mas isso será conquistado se nós seguirmos a universalidade, a antiguidade e o consenso geral” (Comunitório, cap. II). Como cristãos tradicionais subscrevemos o ditado latino Primum est verumquanto mais antigo um ensinamento, mais autêntico ele é. Assim, heresia é fruto da inovação. As heresias são individuais ou geográficas enquanto a ortodoxia é sinodal e universal.

    A afirmação é um documento tradicional, ortodoxo e conservador da fé. Aqueles que se reuniram em 1977 rejeitaram inovações na Igreja Episcopal e naIgreja Anglicana do Canadá, das quais a mais notável foi a suposta ordenação de mulheres como sacerdotes e a mudança radical da forma de adoração da igreja. Posteriormente a Igreja Episcopal incorporou novas heterodoxias como o casamento e a ordenação de homossexuais praticantes e a flexibilização da condenação ao aborto. No anglicanismo teologia e liturgia são faces de uma mesma moda. A afirmação foi um protesto contra a heresia teológica e a descontinuidade litúrgica da Igreja Episcopal norte-americana. A mudança litúrgica aconteceu após o Concílio Vaticano II, entre 1976-1977 e foi tão perturbadora quanto a questão da ordenação de mulheres. A mesma Convenção Geral de Minneapolis (setembro de 1976) que afirmou a permissibilidade da ordenação de mulheres também deu aprovação inicial a alterações radicais no livro de orações, que foram ratificadas finalmente como o Livro de Oração de 1979 após a aprovação de uma segunda Convenção Geral (Sínodo Nacional).

A Igreja Anglicana

      Um elemento que chama a atenção na Afirmação de São Luís, e que é um claro avanço em relação aos demais documentos anglicanos, é sua clareza em relação a alguns temas teológicos que haviam sido mantido obscuros, confusos e mesmo contraditórios no passado. Há pouco na Afirmação da linguagem anglicana convencional e do minimalismo doutrinário que se associa à compreensão anglicana da “Via média”. A Afirmação assume a existência de diferentes níveis de autoridade na Igreja. Afirmação de fato relativiza formulários especificamente anglicanos, como os Trinta e Nove Artigos, e toma posições definidas sobre questões doutrinárias sobre as quais os anglicanos historicamente têm sido indefinidos e divididos. Por outro lado, a Afirmação é clara e definida estão a autoridade dogmática do Sétimo Concílio Ecumênico, o status de todos os sete sacramentos e a necessidade da sucessão apostólica para a eclesiologia válida. A clareza da Afirmação cria uma descontinuidade com a imprecisão ou ambiguidade ou “abrangente” do anglicanismo anterior. A Afirmação não desconhece a existência e o valor dos 39 Artigos de Religião e demais escritos da reforma inglesa mais estabelece como base de sua autoridade o princípio da Hermenêutica da Continuidade destes formulários com a fé católica tradicional do Sete Grandes Concílios da Igreja, sintetizados na própria Afirmação de São Luís. A esse respeito, este é a maior contribuição da Afirmação: “todas as declarações de fé e fórmulas litúrgicas anglicanas devem ser interpretadas de acordo com elas [isto é, os princípios doutrinários da Afirmação]”. Observemos que este princípio pressupõe uma interpretação dos Trinta e Nove Artigos que esteja alinhada com a Afirmação.

A continuidade da fé apostólica

    Como observou o Arcebispo Mark Haverland, da Igreja Católica Anglicana, uma das cinco províncias continuas, em 2019: “[...] a Afirmação se estabelece como uma lente interpretativa para ver e como um princípio hermenêutico para entender “todas as declarações anglicanas de fé e fórmulas litúrgicas”. Que essa afirmação é tomada, que este fato é de importância central na compreensão da Igreja Continuada. As fórmulas anglicanas não são uma espécie de “navalha de Occam” que limita a forma como recebemos a tradição central da fé. Ao contrário, a tradição central da fé, de acordo com a Afirmação, fornece a chave para interpretar as fórmulas e “distintivos” anglicanos. Essa inversão das autoridades hermenêuticas é realmente descontínua com algumas formas de teologia anglicana, embora não com a autocompreensão de muitos anglo-católicos ou, antes do surgimento do anglo-catolicismo, de outros anglicanos mais antigos. 

     O núcleo central da Afirmação direciona a Igreja Contínua tanto para a tradição histórica central da Igreja universal quanto para as grandes Igrejas Romanas e Ortodoxas Orientais. A Afirmação, então, ao estabelecer alguma tensão entre alguns elementos distintivos da história e formulários anglicanos, não obstante estabelece uma unidade muito maior e mais fundamental tanto com a tradição histórica quanto com o consenso vivo das grandes Igrejas do Oriente e do Ocidente. Essa é a maior conquista da Igreja Contínua: uma que deve ser conscientemente aceita e cuidadosamente cultivada.

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