Comentário ao primeiro artigo do Credo Apostólico: Deus e sua Revelação

 


Por P. H. I. Ramos.

CREIO EM DEUS PAI TODO-PODEROSO CRIADOR DO CÉU E DA TERRA

PARTE I – Do conhecimento natural de Deus

Quando a Igreja afirma o primeiro artigo do Símbolo Apostólico, está implícita as vias de acesso ao conhecimento natural de Deus. Deus é o objeto da fé, é a Ele que a fé apreende. Através de S. Paulo, afirmamos com toda a Igreja que por meio do mundo natural que nos cerca todos os homens podem chegar ao conhecimento da existência, unidade e santidade de Deus, tal como afirma em Romanos “porque aquilo que de Deus se pode conhecer é manifesto neles, pois Deus o manifestou a eles. Porque as coisas invisíveis, desde a criação do mundo, são claramente vistas, sendo entendidas por meio das coisas que são feitas; o seu eterno poder e divindade, para que eles fiquem inescusáveis” (1.19-20).

A via de acesso ao conhecimento natural de Deus foi explanada suficientemente na filosofia. Nosso objetivo aqui de forma alguma é fornecer um manual de apologética, mas indicar os caminhos que todos os homens percorreram através da Razão. Cabe observar que as cinco vias não são provas em um sentido científico moderno da existência da divindade, Sto. Tomas nunca sequer usou a expressão “provas da existência de Deus”, mas antes são vias de acesso ao conhecimento da existência de Deus (LERPAGNEUR, 1998). O dominicano foi muito bem alicerçado sobre a Metafísica de Aristóteles ao propor as cinco vias, o filósofo remonta a um Princípio metafísico primeiro que ele se vê incapaz de descrever e a quem o Aquinate identifica como sendo o Deus da Revelação (LERPAGNEUR, 1998). As cinco vias são fundamentadas no realismo aristotélico, que parte não de idealizações ou conjecturas, mas de entes concretos reais que são entes que fazem o intermédio da razão chegar a Deus (SANTOS, 2022).

Os argumentos que partem da experiencia e não das noções da existência de Deus e que fundamentam-se no princípio da razão suficiente são classificados por provas cosmológicas, provas psicológicas e provas morais. As provas cosmológicas fundamentam-se nos fatos da experiência externa pela qual conhecemos a realidade do mundo que nos cerca, e é sob esta perspectiva que Sto. Tomas irá desenvolver as cinco vias. Das cinco vias infere-se que três são dinâmicas e duas estáticas ou intuitivas (SANTOS, 1960). A existência de um motor imóvel (primeira via), da causa eficiente primeira (segunda via) e a do governador (quinta via) são os aspectos dinâmicos ou operativos (SANTOS, 1960). Já as que apelam para a causa de necessidade em todos os seres (terceira via) e da existência de um ser por essência (quarta via) são aspectos entitativos da divindade (SANTOS, 1960). Todas partem da criatura ou ser criado, mas algumas sujeitas a movimento ou tendência a um fim (primeira, segundo e quinta vias) e outras do ser criado quanto a sua duração ou do ser criado quanto a sua existência (terceira e quarta vias).

O terceiro artigo, intitulado “Se Deus existe”, inicia supondo a não existência de Deus. Como primeira objeção, o Aquinate levanta o argumento ateísta de que “se existisse Deus, o mal não existiria”, e este existe na realidade. O argumento segue afirmando numa segunda objeção que as causas das coisas da realidade são puramente naturais, o princípio de tudo é a natureza, reduzida à razão humana e a vontade – o que descartaria a existência da divindade.

Para solucionar o impasse que se cria frente a existência do “Eu sou quem sou” (Ex 3.14), Sto. Tomás recorre ao uso da razão e não exclusivamente a via iluminativa da Palavra Revelada, a Bíblia. O autor recorre então a cinco vias ou modos de se demonstrar a existência de Deus.

A primeira via é a chamada de “procedente do movimento” (AQUINO, 2016). Ora, sabe-se pela experiencia da razão e dos sentidos que todos os seres que habitam este mundo são movidos, e tudo o que é movido é movido por outro ser, sendo levado de potência a ato (AQUINO, 2016). Dessa forma não se poderia proceder até o infinito, porque não haveria um primeiro motor. Assim, afirma-se que deve haver um motor imóvel, um motor que move tudo mas nunca é movido, a isto chamamos Deus (AQUINO, 2016). O Aquinate parte da observação de que todas as coisas no nosso mundo se movem ou se transformam, nosso próprio mundo psíquico ou interior mostra-nos que há mudanças nos pensamentos, afetos e sentimentos, disso não podemos duvidar (SANTOS, 1960). O movimento é essencialmente algo causado, demanda de uma causa – sendo evidente que tudo o que se move, é movido por outra coisa. Conforme vão aumentando os motores movidos, proporcionalmente aumentam-se os novos motores que também são movidos. Essa série infinita de motores movidos é irracional, enquanto não possuímos um motor imóvel eles ficam sem causa que os mova, a série fica sem explicação.

Este primeiro argumento do Aquinate recebeu críticas por estabelecer-se sobre uma premissa apodítica que é o princípio de causalidade (SANTOS, 1960). Dentre os filósofos que falaram a respeito estão Hume, Schopenhauer e Nietzsche (SANTOS, 1960). Os opositores do Doutor Angélico afirmam que uma vez derrubado o princípio da causa primeira todo o edifício das cinco vias tomistas vai ao chão (SANTOS, 1960). Acontece que esta objeção levaria a duas aporias, ou a aceitação de um eterno retorno, ou admitir uma causa de si mesmo, pois o efeito terminaria por ser causa de si mesmo (SANTOS, 1960). Outros autores alegam que a matéria não é inerte, mas ativa (SANTOS, 1960). Contudo, a partir do tomismo, observa-se que o que encontramos de ativo na matéria é o ato que produz, é o ser de que ela participa, e esse ser é o que a move (SANTOS, 1960).

A segunda via é a procedente da “causa eficiente” (AQUINO, 2016). Neste mundo não é possível conceber uma coisa que seja causa de si mesma, uma vez que esta suporia ser anterior a si, o que é impossível (AQUINO, 2016). Também nas causas eficientes não se pode proceder até o infinito (AQUINO, 2016). Assim, faz-se necessário recorrer a “uma causa eficiente primeira”, que denominamos Deus (AQUNO, 20160. O autor parte do pressuposto da experiencia de que há causas eficientes e subordinação ou ordem em várias causas eficientes que culminam um efeito comum (SANTOS, 1960). As causas subordinadas tem a necessária e lógica dependência das que as precede, pois se esta se suprimisse todas cessariam sua atividade (SANTOS, 1960). Portanto, admitir uma série indefinida de causa é estabelecer um efeito sem causa. As objeções ao argumento são as mesmas que do anterior.

A terceira via é a que procede “do possível e do necessário” (AQUINO, 2016). No nosso mundo há coisas que podem ou não ser, sendo ou geradas ou corrompidas (AQUINO, 2016). Afirma-se que “o que pode não ser, algum tempo não foi”, assim em algum momento essa coisa não existia (AQUINO, 2016). Assim, Sto. Tomás afirma que tudo o que é vem a existência a partir de algo que já existe (AQUINO, 2016). Assim, afirma-se que os seres são de fato possíveis, mas um dentre eles é necessário, a quem denominamos Deus (AQUINO, 2016). Por ser contingente entende-se o ser que tem uma potência própria para ser e para não ser, são seres que tem uma limitação, que vem a ser gerados e possuem corrupção, terminam não existindo (AQUINO, 2016). O argumento estabelece que é impossível que todos os seres sejam contingentes, assim é forçoso admitir a existência de um ser que não possa deixar de existir (SANTOS, 1960). Se os seres fossem contingentes deveria admitir-se que o universo teria passado a existência e seria necessário admitir que na realidade houve um momento em que nada existia (SANTOS, 1960). Se admitirmos a existência desse nada absoluto, por lógica deve-se negar a existência da realidade uma vez que no nada absoluto nada pode sair (SANTOS, 1960). Se as duas potencias de ser e não ser pudessem coexistir seria um absurdo (SANTOS, 1960).

Kant opunha-se a esta argumentação pois a identificava com o argumento ontológico de Sto. Anselmo (SANTOS, 1960). O argumento da contingência afirmaria um ser necessário, o que seria falso pois tudo o que há no mundo seria um todo necessário, que depende de suas partes e as partes dependem do todo (SANTOS, 1960). Contudo, o conceito de contingencia implica o conceito de necessidade, o que este autor não observou é que como o argumento tomista é de origem aristotélica, ele é dialeticamente perfeito (SANTOS, 1960).

A quarta via refere-se aos graus das coisas criadas (AQUINO, 2016). Nas coisas criadas haveriam diversos graus de proporção maior ou menor do bem, da verdade, da nobreza dentre outros atributos (AQUINO, 2016). Estes seriam “medidos” por um máximo, e as coisas maximamente verdadeiras são maximamente ser (AQUINO, 2016). Dessa forma, afirma-se que há um ser causa do ser e da bondade e da perfeição de tudo o que existe, a quem denomina-se Deus (AQUINO, 2016). Haveria nas coisas perfeições transcendentais de múltiplos graus (SANTOS, 1960). O argumento começa afirmando que a perfeição é necessariamente causada. Parte-se do princípio aristotélico de que uma coisa que possui determinada perfeição deve possuí-la totalmente ou a não tem (SANTOS, 1960). Toda a perfeição encontrada em um sujeito sem ser de sua essência é necessariamente causada por um agente ou causa extrínseco (SANTOS, 1960). As objeções a este argumento são expostas pelos monistas e os dualistas (SANTOS, 1960).

A última das vias é a que versa sobre o “governo das coisas” (AQUINO, 2016). Afirma-se que os corpos naturais operam em vista de um fim, chegando a este por uma intenção (AQUINO, 2016). Dessa forma, afirma-se que haveria um ente conhecedor e inteligente que guia as coisas de forma ordenada a seu fim, e a este chamamos Deus (AQUINO, 2016). Na natureza existem seres que operam de maneira fixa e invariável, o que permite aos cientistas formular as leis que os regem em sua atividade (SANTOS, 1960). Isso indica que elas tendem para um fim. Postula-se também que uma inteligência se identifica com seu próprio intelecto ou se distingue dela (SANTOS, 1960). Dessa forma, a ordenação a um fim não se pode fazer sem um conhecimento atual do fim, assim segue-se até um inteligência suprema que é a própria intelecção ou entender subsistente, infinito e único (SANTOS, 1960).

A primeira resposta à objeção ateísta apontada pelo Aquinate, o autor recorre a Sto. Agostinho, que afirma que Deus é o sumo bem, e que sua onipotência permite que ele retire até mesmo do mal algum bem (AQUINO, 2016). Assim, Deus embora não seja o autor do mal permite “o mal para deste fazer jorrar o bem” (AQUINO, 2016).

A resposta à segunda objeção ateísta afirma que na natureza tudo é operado por um fim determinado, que está sob orientação de um agente superior, e que é necessário que tudo se reduza a uma causa final ou primeira, que é Deus (AQUINO, 2016). Assim, as coisas não podem se reduzir a mutabilidade e defectibilidade, mas devem ser reduzidas a um principio imóvel e necessário por si só (AQUINO, 2016).

Em conclusão, as cinco vias apresentadas por Santo Tomás de Aquino não devem ser vistas como provas no sentido estrito da palavra, mas sim como caminhos para acessar o conhecimento da existência de Deus. Fundamentadas no realismo aristotélico, essas vias são argumentos racionais que buscam demonstrar a existência de um ser supremo a partir da observação do mundo e da filosofia metafísica. Cada via aborda aspectos diferentes da existência divina, como o movimento, a causa eficiente, o possível e o necessário, os graus das coisas criadas e o governo das coisas. Cada uma dessas vias oferece uma perspectiva única para se chegar à conclusão de que deve existir um ser supremo, que é Deus, como a causa de todas as coisas e o fundamento da realidade.


PARTE II – Da Revelação

A doutrina da Igreja afirma que Deus não nos criou apenas para uma felicidade natural, mas planejava muito mais para todos seus filhos. Ele deseja que tenhamos a vida da própria Trindade em nós, ele deseja que sejamos tal como seu Filho, divinos. Nesta perspectiva, ele providenciou uma forma de falar de si mesmo para nós. Ou seja, nós somos afortunados pois não apenas sabemos algo de Deus através de nossa condição natural através da razão, mas Deus fala sobre si mesmo a nós verdades salvíficas que com nossos esforços somos incapazes de alcançar. A esta mensagem ou comunicação do próprio Deus chamamos de Revelação, que se dá de forma viva com seu Povo e permanece ardendo em chamas de amor na Escritura Sagrada.

Alguns autores entendem que antes de Deus criar a mulher, ele criou o arquétipo Humano em Adão e a partir do versículo “não é bom que o homem esteja só” o Criador separa os sexos Masculino e Feminino. Antes da separação dos sexos já se observa pelas ações do Homem sua capacidade racional, ele utiliza nomes para designar cada ser, demonstrando sua clara aptidão criativa e indicando que um único indivíduo não pode se comunicar, ele precisa de outros. Pode-se perceber que a solidão não foi destinada ao homem, e se este não foi destinado a tal, deve haver alguma maneira pela qual as informações e anseios de um indivíduo sejam transmitidos aos demais, estabelecendo o que denominamos comunicação.

A língua é o que nos separa da barbárie, é um princípio civilizatório. Sabe-se que indivíduos que foram encontrados vivendo na solidão total e completa passaram a um estado animalesco, doentio. Sem dominar o meio da linguagem, o homem não consegue ter acesso às experiências do mundo interno alheio, ele se torna estagnado, colocando sua própria existência em risco. A maneira pela qual o Homem passou a deixar seu conhecimento para as demais gerações foi a escrita, e o sistema linguístico assuma uma posição tripartida de signo-significado-referente. O referente é a coisa em si, no tempo e no espaço, fonte de onde tanto o signo linguístico como o significado tem origem. O referente modela o significado, uma definição “dicionarizada”, produto da capacidade síntese humana. Paralelamente, existe o signo linguístico, uma espécie de “desenho” que representa um som da língua, e costuma imitar algo do referente.

Deus não deseja que o Homem tenha ciência de sua existência e feitos somente pela via natural dos degraus de perfeição da natureza. Ele toma a iniciativa para transmitir algo que contido seio da própria Santíssima Trindade para o Homem, e para tal ele se revela em nosso mundo. Este fenômeno da manifestação de Deus no mundo chama-se Revelação. A Revelação ocorre primeiramente no tempo, em um certo contexto e com fins salvíficos. Deus não age como um taquígrafo, agindo e imediatamente gravando em papel tudo o que ocorre. Inicialmente surge a Sagrada Tradição, que divide-se em oral e, posteriormente, Escrita. No tempo devido, Deus chama homens que ele capacita, inspira, para registrar um conhecimento salvífico destinado aos homens de todos os tempos. É curioso que Deus não apenas nos entregou um livro e deixou-nos com a sorte de interpretá-lo, Ele envia uma Pessoa da Trindade, o Espírito Santo, para dar assistência na interpretação de sua revelação escrita. O Espírito Santo consiste nessa alma da Igreja, que guia todos os cristãos para a Verdade, protegendo-os do erro, capacitando os bispos e clérigos para a pureza do Evangelho e a correta administração dos sacramentos. É uma presença dinâmica no interior da própria Igreja, não estática numa estante empoeirada. De forma alguma deseja-se dizer que a Sagrada Escritura é dispensável, contudo, Deus chama à fé cristã inclusive os iletrados. Os primeiros cristãos perceberam isso, para ajudar os que não sabiam ler, pintavam em suas catacumbas ilustrações de episódios bíblicos.


REFERÊNCIAS

AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. Volume 1. Campinas: Ecclesiae; Permanência, 2016.

LEPARGNEUR, Hubert. Heidegger e Tomás de Aquino: uma alternativa no tocante ao ser. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, 1998, p. 203-217.

SANTOS, Mario Ferreira dos. O homem perante o infinito. São Paulo: Logos, 1960. Disponível em: https://sumateologica.wordpress.com/2018/07/20/mario-ferreira-dos-santos-e-as-cinco-vias-de-santo-tomas-de-aquino/. Acessado em: 01/11/2023.

SANTOS, Lucas Tomaz de Jesus dos. As cinco vias de Tomás de Aquino e a relação entre fé e razão. Universidade de Brasília: Brasília, 2022.

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