SOBRE LITURGIA: TRADUÇÃO E REVISÃO
Por: Bispo Stephen Scarlett
Em posts anteriores desta série, abordei mudanças na liturgia anglicana que ocorreram nos últimos cinquenta anos ou mais. Essas mudanças foram duplas. Primeiro, revisar a liturgia para torná-la mais palatável à teologia e ao sentimento modernos. Segundo, desenvolver opções litúrgicas que se adaptem a gostos diferentes.
Há uma distinção entre revisão e tradução. Traduzir é traduzir uma palavra ou conceito em outra língua ou idioma com a intenção de manter o mesmo significado. Revisar é mudar o significado. Essas duas questões eram frequentemente confundidas na revisão litúrgica. Argumentava-se que palavras mais antigas precisavam ser traduzidas para a linguagem moderna para que as pessoas pudessem entendê-las. No entanto, isso era apenas uma cobertura para a revisão — uma mudança de significado.
Um problema de tradução foi traduzir o inglês antigo “thee” e “thou”(Nota do tradutor: ambas expressões são a terceira pessoa do singular, o ‘tu’) para o mais contemporâneo “you” e “your” (Nota do tradutor: ambas as expressões são os contemporâneos termos ‘você’ e ‘seu’). Não há nada teológico errado em usar pronomes ingleses modernos em vez de antigos. Se essa tivesse sido a principal mudança na liturgia anglicana na década de 1970, não haveria Igreja Continuante.
No entanto, isso levanta questões relacionadas à beleza, poesia e cadência. A tradução do latim medieval para o inglês na Reforma ocorreu em um ponto alto da língua inglesa. A tradução do inglês tradicional para o inglês contemporâneo ocorreu em um ponto mais baixo. Beleza, poesia e cadência são aspectos valiosos da liturgia. Muitas vezes, eles se perderam na tradução. Isso se relaciona à ideia de que a liturgia deve ser facilmente compreendida por todos. A linguagem litúrgica sempre foi diferente da linguagem cotidiana. As pessoas sempre tiveram que aprendê-la. À objeção, "As pessoas não falam mais usando a linguagem tradicional", a resposta seria, "Eles também não falam em palavras que soem como a liturgia contemporânea".
A liturgia é algo que é aprendido e, com o tempo, “levado a sério”. O conhecimento litúrgico não é meramente racional. A beleza poética e rítmica das palavras auxilia esse processo de conhecimento. As canções que levamos a sério ao longo do tempo também têm essa qualidade. Lembramos de canções com palavras que são poéticas, bonitas e significativas, mas outras canções têm uma qualidade insípida e banal que gostaríamos de esquecer. Pode levar tempo para memorizar um belo poema ou soneto, mas, uma vez que você o fizer, ele ficará com você para o resto da vida.
Há outras questões de tradução. Às vezes, uma palavra teológica antiga não tem equivalente moderno. A tentativa de traduzi-la, portanto, tem implicações teológicas. Este é o assunto para outra discussão. No entanto, um ponto pode ser levantado. Em um mundo que não pensa em categorias conectadas à cosmovisão bíblica, o equivalente moderno geralmente não é.
Há questões litúrgicas na outra direção também. Algumas pessoas veem a liturgia como uma espécie de encantamento mágico. Para elas, “a fé” é centrada em um fundamentalismo litúrgico que consiste em dizer as palavras certas em sua forma antiga, exatamente da maneira certa. Menos atenção é dada à experiência de união com Deus em Cristo por meio do Espírito, e aos frutos dessa experiência manifestados no amor comunitário. O amor comunitário é um teste válido da vida litúrgica de uma igreja. Em Apocalipse 2, o Cristo ressuscitado e ascendido elogiou a Igreja de Éfeso por sua oposição ao erro e compromisso com a verdadeira fé, mas disse: “No entanto, tenho contra ti que abandonaste o teu primeiro amor” (Ap 2:4). A menos que se arrependesse de sua perda de amor, Jesus disse que esta igreja perseverante deixaria de existir.
A alegação de que a liturgia teve que ser revisada para o bem da missão contemporânea efetiva não foi provada pela experiência. As igrejas anglicanas ocidentais perderam pessoas no exato momento em que estavam atualizando a liturgia para atraí-las. A hemorragia foi ocasionada por uma perda epidêmica de fé por líderes da igreja do século XIX até meados do século XX. Esta foi a verdadeira razão para a revisão litúrgica. Muitos líderes não acreditavam mais na fé em sua forma recebida. Esses líderes precisaram mudar a liturgia para acomodar sua perda de fé.
A liturgia nunca foi destinada à evangelização. Ela sempre foi para os instruídos e comprometidos. Na igreja primitiva, os não iniciados não tinham permissão nem para permanecer na igreja após a Liturgia da Palavra. A exortação litúrgica era: “Que todos os catecúmenos partam. Que nenhum catecúmeno permaneça.” Essa abordagem era parte do programa missionário que fez a igreja crescer, na estimativa de Rodney Starks, de cerca de 7.500 pessoas no final do primeiro século para cerca de 6.000.0000 no início do quarto século — antes de Constantino se converter (The Rise of Christianity, 6-7). Isso está muito longe da abordagem de marketing moderna — “Venha ver nossa adoração emocionante, inclusiva e acessível” — que acompanhou um declínio geral na fé e na fidelidade.
Há uma questão de tradução litúrgica que se enquadra em uma categoria ligeiramente diferente. Ou seja, a tradução da Bíblia. Enquanto as orações da liturgia são fixas e frequentemente repetidas, as leituras da Bíblia variam e são engajadas de forma diferente. Nós “entramos” na experiência da liturgia em geral, mas damos atenção especial às palavras da Escritura; nós “lemos, marcamos, aprendemos e as digerimos interiormente” (Coleta do Advento 2, BCP 92). Isso requer que sejamos capazes de ouvi-las e entendê-las à medida que são lidas — com a ajuda de pregadores e professores. Este será o tópico do meu próximo post.
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